Na hora que resolver
Podem guardar seu caixão
Para melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão."
Ontem fui ver "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'água" no Unibanco - Glauber Rocha. Gosto de chamar assim pq o charme de ressucitar o Glauber é algo incrível, mas a iniciativa do Unibando de fazer a reforma não pode ser ignorada, principalmente por transformar em cinema com afinidade a filmes de arte. E foi especial ter visto Quincas lá pq na saída já nos deparamos com várias paisagens do filme. Olhei para a estátua de Castro Alves com olhar especial - vão ver q irão entender.
Estava há 1 semana doida pra ver depois de ter lido o comentário de Contardo Calligaris na Folha da semana passada - está postado para vcs logo abaixo.
O filme é MARAVILHOSO. Exageros à parte, o filme nos faz pensar em como levamos a vida...
E eu me lembrei de de meu pai, q era meio Quincas e que morreu cedo justamente por isso. E de um colega Oncologista q disse recentemente em uma reunião científica que ficou sem saber o q fazer quando um paciente muito humilde lhe respondeu à sua proposta de iniciar uma quimioterapia: "Dotô, me disculpe, mas num quero não. O que me importa na vida é a largueza e não a cumprideza" - em alusão em ir pra casa curtir com os entes queridos os últimos dias de vida, ao invés de internar, fazer quimio para ganhar alguns dias ou semanas longe de todos. Hj em dia trabalho bastante com pacientes oncológicos por causa do exame de PET/CT. E a proximidade da finitude da vida me traz grandes reflexões cotidianas.
Deixo vcs com os comentários de Contardo sobre o filme. Acrescento ao comentário dos atores a excelente atuação dos 4 amigos beberrões de Quincas - todos atores baianos, com especial destaque a Luiz Miranda, de quem sou fã desde a Terça Insana - se quiserem conhecer um pouco mais procurem no Youtube.
Bjos for all,
Ade
CONTARDO CALLIGARIS
Carpe diem, aproveite o momento
Quem vive plenamente não terá medo de morrer. Mas o que é viver plenamente? |
ESTREIA AMANHÃ , Brasil afora, "Quincas Berro d'Água", de Sérgio Machado, inspirado num dos romances mais bonitos (e mais lidos) de Jorge Amado, "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".
O filme é uma daquelas raríssimas obras que nos fazem rir e sorrir da vida, do mundo e de nós mesmos, enquanto, justamente, pensamos seriamente na vida, no mundo e em nós mesmos.
Esse milagre deve ser efeito do roteiro (do próprio Machado) e da atuação de um conjunto de atores que todos mereceriam ser mencionados, a começar por Paulo José, que é Quincas, vivo e morto (e não pense que encarnar um morto seja tarefa fácil).
Agora, nesse grupo extraordinário, quem rouba a cena é Mariana Ximenes, no papel de Vanda, a filha que Quincas abandonou quando deixou sua vida de funcionário "respeitável" e caiu na farra. Quase sem palavras, com delicadas e progressivas mudanças de seu olhar, Ximenes nos conta, de maneira inesquecível, o despertar nela dos genes paternos.
Enfim, meu jeito de agradecer à equipe que nos oferece esse filme foi anotar algumas reflexões que ele suscitou em mim.
1) Quase sempre, quando sonhamos em mudar de vida radicalmente, enxergamos esse ato como a conquista de uma alforria: seremos livres -dos pais ou, então, da mulher ou do marido que nos aprisionam. De fato, às vezes, os outros nos controlam e nos impedem de viver, mas não é frequente.
Em geral, nós os acusamos pela mesmice de nossa vida ("se nos livrássemos desses tiranos, poderíamos viver plenamente"), mas a tirania que nos oprime é a de nossa inércia e de nossa covardia.
2) Às vezes, num casal, as exigências triviais do parceiro são intoleráveis por parecerem absolutamente insignificantes: tire os pés da mesa, não espalhe o jornal pelo chão da sala nem a roupa pelo chão do quarto. Indignação: a morte nos espreita, e eis que alguém se preocupa com as migalhas que podem cair no sofá.
Como teria dito Sêneca, nós nascemos para coisas grandes demais para continuarmos escravos dessas picuinhas, não é?
Problema: uma vez chutado o pau da barraca, quem garante que a "grandeza" para a qual nascemos não se resuma em comer livremente amendoins na cama?
3) Quincas tem razão: só teme a morte quem não se permitiu viver, ou seja, quem viveu plenamente não tem medo de morrer.
Mas o que é uma vida plena? Será que é a vida de Quincas? A bebida e os amores? A fuga das responsabilidades domésticas?
Talvez o valor da farra de Quincas esteja, sobretudo, na liberdade de viver sem se importar com o julgamento dos outros, com a boa reputação. Para aproveitar a vida, antes de mais nada, não se preocupe com o olhar reprovador dos demais.
4) Reli a ode 1.11 de Horácio, onde está o famoso "carpe diem" (colha o dia). Horácio sugere que não apostemos nossas fichas no futuro, mas nos preocupemos com o agora, com o hoje.
Tudo bem, mas será que viver como se não houvesse amanhã significa necessariamente perder-se (ou encontrar-se) nos prazeres imediatos da carne? Não é nada óbvio. Um cristão poderia concordar com Horácio, entendendo o "carpe diem" assim: é preciso estar em paz com Deus hoje, agora, não amanhã.
5) Então, o que é viver plenamente: gozar, rezar, meditar, cultivar-se?
Talvez seja possível responder sem tomar partido.
Eis uma anedota da qual Quincas teria gostado. O rei da Itália, Vittorio Emanuele 2º, passeava a cavalo pelo campo de seu Piemonte nativo.
Chegou à fazendola de um camponês, que fez grande festa e o convidou à mesa.
Vittorio Emanuele elogiou o vinho do camponês, o qual comentou: "Isto não é nada. Sua Majestade deveria experimentar o de três anos atrás". O rei replicou: "E esse vinho de três anos atrás acabou?". "Não acabou, Majestade", respondeu o homem, "mas a gente guarda o que sobrou para as grandes ocasiões".
Pois é, quando Mefisto comprou a alma de Faust, ele impôs a seguinte condição: Faust viveria até o dia em que, diante da beleza do que ele estaria vivenciando, fosse levado a pedir que o átimo parasse. Quando isso acontecesse, ele morreria, seu tempo acabaria.
Há várias interpretações dessa passagem do "Faust", de Goethe (1, 699-706); uma delas é que Faust só poderia morrer uma vez que ele descobrisse o segredo da vida. E esse segredo é que, para viver plenamente, é preciso reconhecer que, com ou sem o rei sentado à mesa, com farra ou sem farra, na alegria ou na tristeza, cada momento presente é sempre uma grande ocasião.
Gostei, heuris! Beijão!
ResponderExcluirGosto muito dos teus textos... Não assisti o filme, mas acho que será uma das minhas atividades nesta semana. Bjocas
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